O 25 de Abril nasceu em África

O 25 de Abril nasceu em África

José Gomes 
25 de Abril, 2024

“Se a queda do fascismo em Portugal não conduzir ao fim do colonialismo – hipótese aliás admitida por alguns dos líderes da oposição portuguesa – nós estamos certos de que a liquidação do colonialismo português arrastará a destruição do fascismo em Portugal.”
“Através da nossa luta de libertação, nós contribuímos eficazmente para a queda do fascismo português e damos ao povo de Portugal a melhor prova da nossa solidariedade.”
 
Amílcar Lopes Cabral, Engenheiro Agrónomo e um dos fundadores do Partido Africano para a Independência da Guiné-Bissau e Cabo Verde em Textos Políticos, Edições Afrontamento.
Raras vezes a História demonstrou de forma tão cristalina a dialéctica que se gera em momentos revolucionários entre as lutas dos povos – tanto mais quando existem entre eles laços económicos – como aquela que se teceu entre as lutas de libertação nacionais em África, o iniciar do processo político que ficou conhecido como “25 de Abril” e o reconhecimento de jure das independências de Cabo Verde, Guiné-Bissau, Angola, São Tomé e Príncipe e Moçambique por parte do Governo saído do “25 de Abril” de 1974.
A Revolução francesa, no seu período entre Março de 1793 e Julho de 1794, mergulhada na vontade do seu povo revolucionário – servos, camponeses e artesãos –, juntamente com os radicais jacobinos, em acabar com a tirania e opressão próprias da época – quer fossem os privilégios da “aristocracia de sangue ou religiosa”, quer fossem os “ da aristocracia de cor”, onde quer que se encontrassem arraigados – e instigada fundamentalmente pela revolta em massa de escravos nas apelidadas Índias Ocidentais, concretizou uma espécie de solidariedade internacionalista avant la lettre, consubstanciada, aquando da Convenção nacional de Janeiro de 1794, na firme exigência da efectivação da abolição da escravatura, não obstante a recalcitrância da burguesia marítima. Esta mesma revolução francesa – possibilitada pela brutal acumulação de capital que a burguesia francesa pôde fazer com a exploração do trabalho escravo na então chamada colónia de São Domingo – actuais Haiti e República Dominicana – e demais colónias, fortalecendo a burguesia para a “sua revolução” – deu impulso a uma outra: a Revolução haitiana magistralmente descrita na obra “Jacobinos negros” de C.L.R. James.
Trazer à tona particularmente estes momentos históricos intrinsecamente ligados entre si – Rev. Francesa e Rev. Haitiana – onde os povos puseram em prática essa espécie de solidariedade militante internacionalista genuína própria das épocas revolucionárias, releva, mutatis mutandis, de toda a pertinência. Isto pois, as lutas de libertação em África contra o colonialismo português e as lutas travadas pelo povo português aquando do “25 de Abril”, encontraram igualmente essa solidariedade militante internacionalista nos 2 sentidos, possibilitada, tanto pelas relações económicas entre a metrópole e as colónias, como pela pertença à mesma classe trabalhadora dos povos em luta em Portugal e no continente africano – não obstante a heterogeneidade de situações e estatutos dentro dessa mesma classe – o que significava terem pela frente os mesmos exploradores e opressores!
Essa mesma luta pan-africanista revolucionária contra o colonialismo português, entendendo Amílcar Cabral este fenómeno como “ a paralisia ou o desvio, a paragem total, da história dum povo em favor da aceleração do desenvolvimento histórico de outros povos”, se teve enquanto propulsores os vários massacres realizados pelo Estado colonialista português – desde a Revolta de Nhô Ambrose em Cabo Verde, passando pelo Massacre de Batepá em São Tomé, a Greve de Pidjiguiti, a manifestação de Mueda em Moçambique e a greve da baixa de Cassange em Angola – igualmente serviu de instigador desse momento fundamental na História Contemporânea de Portugal: o 25 de Abril de 1974.
O processo histórico iniciado e conhecido como “25 de Abril de 1974”, entreabriu-se na História a partir do momento em que 13 anos de luta de libertação dos povos africanos e uma derrota política, militar e diplomática do Estado colonialista português – mais vincada nomeadamente na Guiné-Bissau, onde os primeiros tiros foram dados a partir de 1961 com a MLG e a luta verdadeiramente organizada e total foi levada a cabo a partir de 1963 com a acção revolucionária do PAIGC – não fez perceber às suas elites políticas e económicas – ou a impossibilitada de praticarem o neocolonialismo português como afirmava Amílcar Cabral – que a única alternativa que colocaria fim à guerra e ao calvário dos militares portugueses nos teatros de guerra em África, seria “entabular” negociações. Negociações essas que, fruto da firmeza dos movimentos de libertação nacional, não poderiam visar senão o fim do imperialismo português em África, na sua forma colonialista, e a aceitação das independências africanas de facto e de direito.
Nem a morte de Salazar em Julho de 1970 que, alguns, ingenuamente, acreditavam poder levar finalmente a negociações com os movimentos de libertação nacionais em África, nem a dita «Primavera marcelista», ainda menos as iniciativas do General Spínola para iniciar conversações com o PAIGC, foram mais fortes do que os imperativos dos sobrelucros coloniais que os grupos económicos monopolistas da metrópole – e dos países da NATO – exigiam e que só seria possível através da preservação, de forma monopolista, para si, dessas parcelas de território em África e reprimindo todo o tipo de liberdades políticas.
Iniciar negociações com o PAIGC na Guiné-Bissau – colocadas em cima da mesa graças à gloriosa luta do PAIGC em todos os planos e propostas pelo próprio representante máximo do Estado português nessa colónia, o General Spínola –, não obstante a importância da questão geoestratégica de Cabo Verde, teria como perigo a questão do precedente que se abriria e que, forçosamente, teria igualmente que ser aplicado aos outros movimentos de libertação de Angola e Moçambique que, enquanto territórios de facto de povoação e exploração, tinham uma relevância económica para as elites económicas portuguesas e dos países da NATO incomparavelmente superior àquela que tinha a Guiné-Bissau. Era, portanto, algo inconcebível para as elites políticas e económicas em Portugal, no contexto do regime do “Estado novo”, negociar com os movimentos de libertação, outrora então designados “terroristas”.
Da mesma forma que, para Salazar, “África não existia”, para Marcelo Caetano, na mesma linha e imbuído do mesmo espírito racista, era preferível um desastre militar na Guiné-Bissau a negociar fosse com quem fosse.
Os militares portugueses, entendendo o significado do “desastre militar” para si – à custa de vidas humanas perdidas, à custa de um certo grau de politização frutos das suas experiências pessoais e contacto com organizações anti-regime na metrópole, nomeadamente estudantis e igualmente pelo trabalho político do PAIGC através dos seus panfletos específicos dirigidos aos militares portugueses – colocados perante este dilema de forma tão evidente, estavam perante uma escolha: continuar uma guerra inútil porque como afirmava Cabral, “Portugal nunca teve hipótese de sair vitorioso” ou, na metrópole, fazer face de forma radical à intransigência anacrónica de um regime político em que as suas classes possuidoras imbuídas de um racismo primário e cegadas pelos seus interesses de classe, acreditavam que os territórios ditos do ultramar pertenciam-lhes por direito histórico de ocupação…
Das várias figuras que se destacaram durante o período pós 25 de Abril, 3 estiveram na Guiné-Bissau em funções político-militares: General Spínola – Governador e Comandante em Chefe na Guiné-Bissau entre 1968 e 1973; e os capitães de Abril, Salgueiro Maio – Comandante de Companhia de Cavalaria; bem como Otelo Saraiva de Carvalho – enquanto Capitão e representante para as Ações Psicossociais junto das populações Bissau-guineenses entre 1970 e 1973.
A obra de Rui Filipe de Brito Camacho Duarte, «os militares portugueses: da contestação à descolonização», demonstra com factos históricos a importância que os militares presentes na Guiné-Bissau, tiveram em todo o processo conspirativo e organizativo para que acontecesse o 25 de Abril de 1974.
Igualmente, também se pode depreender deste facto, o quão politizada, revolucionariamente humanista e combativa foi a luta levada a cabo pelo povo Bissau-guineense e Cabo-verdiano contra o Estado colonial, vanguardizada pelo PAIGC de Amílcar Cabral.
A História, legitima-nos dizer que, numa primeira fase, foi a luta sem tréguas de libertação dos povos africanos – em todas as suas formas, nomeadamente a política e militar – que impeliu os “capitães de Abril” a proceder a um golpe de Estado fazendo com que o poder político passasse para uma Junta militar, com vista primeiramente e acima de tudo, a pôr um fim ao conflito militar em África de forma negociada.
Após o 25 de Abril, e no seu processo dialéctico, foi o povo português, apropriando-se organizando-se nas ruas, escolas, universidades e locais de trabalho, e reivindicando direitos políticos e económicos que lhes tinham sido sonegados pelas necessidades de lucro da classe burguesa através da imposição de uma ditadura que criara “paz social” para melhor explorar, obrigaram a uma radicalização do MFA e a aceitação de jure das independências dos povos africanos.
O facto histórico que nos demonstra a importância do papel desempenhado pelos trabalhadores portugueses na radicalização do MFA – no que diz respeito especificamente ao reconhecimento das independências africanas – é a mudança radical de postura política do indigitado chefe da Junta Militar, Spínola, que, na sua primeira declaração enquanto Chefe da Junta Militar, no dia 26 de Abril, afirmava ter o dever de «garantir a sobrevivência da Nação soberana na sua integridade pluricontinental». Com essa frase, Spínola, não fez mais do que recuperar teses federalistas de Manuel José Homem de Melo na sua obra «Portugal, o Ultramar e o Futuro de 1962», bem como da sua própria obra datada de 1974 «Portugal e o futuro». Teses estas que não eram mais do que uma forma de expressar, para além de interesses de classe da miserável burguesia em Portugal, o racismo e o paternalismo das elites políticas de então para com os africanos consubstanciadas na crença da «imaturidade daqueles para a autodeterminação» – postura tão veementemente criticada por Amílcar Cabral.
Agostinho Neto, então secretário-geral do MPLA, perante estas declarações, reagia desta forma:
“Rejeitamos as conclusões do general Spínola. Nenhum movimento de libertação poderá alguma vez aceitar o projecto de federação dos territórios africanos com Portugal. Fomos colonizados desde 1482 e isso chega. Queremos a nossa independência completa. A nossa esperança reside no Povo Português, que, depois de ter sofrido durante mais de quarenta anos, deve obrigar a Junta a uma atitude democrática e realista. Combatemos o sistema, mas não lutamos contra o Povo Português.”
Agostinho Neto retomara, a clarividente análise de separação feita por Amílcar Cabral e as responsabilidades que daí advinham, quando este dissera que os povos africanos faziam a distinção entre o Governo colonial fascista e o povo de Portugal e que, consequentemente a luta não era não era contra o povo português mas sim contra o Estado colonialista.
Distinguidas igualmente foram as tarefas de destruição do Estado colonialista – que caberia aos povos africanos – e a de destruir o Estado fascista em todas as suas extensões – que caberia ao povo português! Assim, a solidariedade internacionalista deveria mediar as 2 lutas!
Novamente, na História, tal como na Revolução francesa, este aforisma soara e o Povo português entendeu-o e colocou-o em acção: “Uma nação jamais pode ser livre enquanto escravizar outra”!
O General Spínola, posteriormente, obrigado pela classe trabalhadora e sua radicalização, com consequências para a própria radicalização do programa político do MFA, vê-se obrigado a aceitar de jure as independências dos países africanos em luta.
O tempo que medeia a frase de Spínola no dia 26 de Abril de 1974 e a aceitação de jure das Independências africanas – da Guiné-Bissau com os acordos de Argel em 26 de Agosto; a independência de Moçambique com os acordos de Lusaka de 7 de Setembro de 1974; a independência de Angola com os acordos de Alvor de 15 de Janeiro de 1975; a independência de Cabo Verde em 5 de Julho de 1975 e a independência de São Tomé e Príncipe em 12 de Julho de 1975 – é o tempo da elevação da consciência política dos trabalhadores, consequentemente o tempo da edificação de uma solidariedade militante entre povos, i.e., de uma consciência internacionalista.
John Woollacot, en “dépit” do termo empregue “decisivamente”
– que deveria aplicar-se sim às lutas de independência africanas na influência sobre o início do 25 de Abril em Portugal – resumiu de forma lapidar esta dialéctica:
“Deste modo, o movimento popular e revolucionário em Portugal, ao lutar pelos seus próprios objectivos, contribuiu decisivamente para a luta de independência das colónias africanas – luta essa que, por sua vez, havia tornado possível, antes de qualquer outro factor, o desenvolvimento daquele movimento.”
A luta da classe trabalhadora desencadeada com o “25 de Abril” e as suas conquistas civilizacionais, são um património a ser preservado e alargado não só classe pela classe trabalhadora portuguesa mas, por toda a classe trabalhadora em Portugal – nomeadamente aquela imigrante e de origem africana, exactamente pelo papel e contributos fundamentais das mulheres e homens africanos, seja com a caneta e/ou a arma na mão, para o desencadear do processo que levou ao início dessas conquistas civilizacionais!
Honra às mulheres e homens que tombaram na luta contra o fascismo e o colonialismo!
Unidade e Luta!

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